São Paulo, Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1965)
A modernidade do espaço e a insanidade do tempo
Escrito por Neurilan Lima
Revisado por Rafael Ramagem
A modernidade do espaço e a insanidade do tempo
Escrito por Neurilan Lima
Revisado por Rafael Ramagem
16 de setembro de 2025
São Paulo, Sociedade Anônima (1965, Luiz Sérgio Person)
Quando se discute o Cinema Novo brasileiro, é importante destacar a influência do Neorrealismo italiano e da Nouvelle Vague francesa, que reverberaram fortemente nesse movimento cinematográfico tão importante para a história do cinema nacional. São Paulo, Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1965), exibido na Mostra 60 anos do Festival de Brasília, é uma das grandes obras que exemplifica bem a corrente do nosso Cinema Novo. Desilusões poéticas e crítica social? Aqui, Luiz Sérgio Person nos traz tudo isso sob o olhar melancólico e intimista da classe média.
No filme, acompanhamos Carlos (Walmor Chagas), um rapaz que reside em São Paulo durante o processo de avanço industrial automobilístico dos anos 50, mas que vive em constante crise: de alguma forma ele não consegue se encontrar no mundo. À medida em que Carlos “sobe” na vida, ele se decepciona cada vez mais em não estar satisfeito com sua ascensão; a dúvida acerca do que causa essa angústia é a principal causa de seu sofrimento.
A narrativa é guiada de forma não linear, com o filme começando em seu desfecho, com Carlos deixando Luciana (Eva Wilma) e indo embora de casa. A montagem aos poucos revela o quebra-cabeças de como o protagonista chegou àquele ponto: a relação com suas amantes, a amizade com o patrão, seu casamento e emprego, tudo isso mostrado fora de ordem. Essa estrutura temporal desordenada transfere a sensação de deslocamento de Carlos para o espectador, dando-nos um gosto de sua agonia em meio à metrópole. A ideia de tempo é reforçada com a intensa ânsia que o protagonista tem por recomeços.
“Mil vezes recomeçar... Recomeçar de novo, recomeçar sempre. Esquecer Ana. Apagar Luciana. Lembrar-se das cinquenta obrigações diárias do trabalho. Recomeçar. Recomeçar. Aceitar.”
O recomeço em questão é a sensação de que tudo o que se viveu não vale nada; o desespero de ter consciência de que o tempo se perdeu. A montagem traz a amargura de um tempo tão agonizante que sua ordem sequer faz diferença. Dessa forma, a aflição continua, tanto para o protagonista quanto para o espectador.
Uma das cenas mais impactantes da história é quando Carlos visita Hilda (Ana Esmeralda), sua antiga amante, e percebe que, ao voltar para São Paulo, sua sanidade é perdida - o peso dessa cena é maior por já sabermos previamente seu fim. Hilda tira a própria vida, mas antes conversa com Carlos sobre como achava que sair de São Paulo seria um recomeço em sua vida, e no fim ela sempre acaba voltando à cidade. São Paulo é poeticamente retratada como um lugar amaldiçoado, bem mais do que um espaço, é um personagem.
São Paulo aqui não ocupa o cargo de simples personagem, mas de antagonista da história. O conceito de retratar o espaço como “vilão” remete muito à Limite (Mario Peixoto, 1931), um grande clássico do cinema nacional que reflete o antagonismo do espaço sob as lentes de Edgar Brazil. A obra de Peixoto mostra a natureza selvagem como ênfase do sofrimento de seus personagens, onde as águas e o vento forte transmitem a agonia desses indivíduos que, à deriva, já desistiram de remar, pois viver nesse mundo havia se tornado insuportável.
Limite (Mário Peixoto, 1931)
Já em São Paulo, Sociedade Anônima, o desespero é retratado com a cidade grande em processo de modernização avassalador. A fotografia de Ricardo Aronovich contrasta a beleza dos grandes prédios e avenidas ao sistema que oprime a classe operária na ascensão de uma indústria que tende a explorá-la cada vez mais. Morar em São Paulo reflete a angústia de sempre estar sob a sombra desse sistema, por mais que Carlos recorra à distração do trabalho e ao casamento como refúgio, chega um ponto em que não há mais como mascarar o fardo de sua existência. Os prédios, carros, pessoas nas ruas e nas indústrias, são pequenos elementos que se unem até atingirem o limite do protagonista, até ele perceber que não há escapatória dessa dor.
“Pessoal e intransferível.”
Hilda (Ana Esmeralda) contempla São Paulo, em agonia.
O filme termina com a conclusão de que o recomeço é só uma das grandes ilusões que o ser humano cria para enganar a si mesmo. Para se permitir ter esperança em um futuro (como quando o patrão de Carlos diz que sempre acreditou no Brasil). Aqui o tempo já não importa e o espaço nos adoece. Luiz Sérgio Person traz uma visão moderna de como a existência em um sistema capitalista sufoca nossa sociedade em prol do “grande avanço econômico do país”. Trazer o maior polo de hegemonia cultural e econômica como alegoria a essa estrutura é o que torna esse filme tão belo. Honestamente, nunca pensei que fosse usar um adjetivo de beleza para falar de São Paulo.