Quatro Meninas (Karen Suzane, 2025)
DA ABJEÇÃO
Escrito por Davi Pieri
Revisado por Letícia Negreiros
DA ABJEÇÃO
Escrito por Davi Pieri
Revisado por Letícia Negreiros
17 de setembro de 2025
O melhor plano de Quatro Meninas (2025), filme de Karen Suzane que estreia na Mostra Competitiva Nacional no 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, surge na primeira vez em que as oito meninas, de um lado as ex-escravizadas e do outro as ex-sinhás, sentam-se juntas à mesa. Francisca (Maria Antônia Ibraim) segue exercendo seu antigo papel vindo do internato e serve as mulheres brancas à mesa. As outras mulheres negras olham com desgosto para o gesto da amiga, mas sem manifestar oposição. Karen Suzane não corta; as atrizes não verbalizam nada; apenas o gesto nos conduz pela cena. Este plano é um bom exemplo da ideia de mise-en-scène teatral (que engloba toda a esfera da disposição do cenário, da movimentação cênica e do espaço pessoal em que o ator desenvolve suas ações) e demonstra também como, no âmbito de seu filme, Suzane consegue, por um breve momento, orientar uma cena de forma mais sutil, serena e confiando no peso da encenação cinematográfica antes de apelar para artifícios dramáticos pueris.
Ao mesmo tempo, este que é o melhor plano do filme também desvela os seus problemas estéticos mais graves. Funciona porque é um plano sequência fixo, sem cortes. Do contrário, poderia ser potencialmente um desastre, visto que a decupagem e montagem do filme inteiro são confusas, truncadas, sem ritmo, de modo que o espaço fílmico parece para Suzane uma esfinge cujo mistério ela não soube solucionar. O exemplo mais crasso disto é que, ao invés de cortes que modificam semanticamente a relação da câmera com o espaço filmado, a diretora utiliza frequentemente de crops, isto é, apenas aproxima a câmera (uma ou mais vezes) do objeto filmado no mesmo ângulo do enquadramento anterior. Na prática, a cena vai se tornando, a cada “cropada”, menos interessante visualmente. Outro exemplo é o terrível uso do split diopter logo no começo do filme - trata-se de um filtro que se acopla à frente da lente principal da câmera para criar dois planos de foco distintos numa única imagem. Em Quatro Meninas, ele é utilizado sem qualquer propósito aparente, pois nem mesmo engrandece o plano; ao contrário, enfeia-o com um borrão incômodo no centro da imagem.
Ainda outro problema evidenciado por este único (e raro) plano sequência são as atuações. Como as atrizes não verbalizam nada enquanto Francisca serve as sinhás, resta apenas à simplicidade do gesto conduzir a cena, de modo que o acontecimento representado ganha força por si mesmo. Contudo, durante todo o restante da duração do longa, nenhuma atriz consegue sustentar a personagem que carrega: seja do lado das ex-escravizadas, que (apesar dos diálogos parecerem saídos de uma novela escrita às pressas ou filme barato de princesa da Disney) não têm subtexto suficiente em suas falas para trazer o peso que elas exigem; ou das sinhás, que igualmente carecem da coragem e maturidade necessárias para encarnar personagens símbolo de um dos contextos sociais mais cruéis da história brasileira. As falas são ditas ao léu, expositivamente, sem o tensionamento necessário que um ator carrega ao trazer, nas entrelinhas de cada linha de texto, o não-dito - isto é, o verdadeiro coração dramático de uma cena.
A incompreensão do que constitui, numa situação dramática, texto e subtexto, reflete outro grande problema de Quatro Meninas - que não é exclusivo do filme e, até o momento de realização deste texto, vem sendo a tônica desta edição da mostra competitiva do Festival de Brasília, especialmente no campo da ficção: a inaptidão para a escrita. Antes de qualquer trabalho com a câmera, o roteiro é incapaz de lidar com situações dramáticas simples, de estruturar uma fluidez nos conflitos de cena. O filme é, primeiramente, bastante inofensivo, com soluções artificiais e rápidas para os menores conflitos criados. São muitos os exemplos. Podemos começar pelo fim (e aqui vai o aviso de spoilers, aos que se preocupam): Benjamin (João Vitor Silva), o homem violento que Lena (Dhara Lopes) tenta matar como reação após uma convivência abusiva, é pouquíssimo ameaçador de fato. Falta certa coragem de apresentar esta figura como uma ameaça de alguma forma: seja física ou psíquica.
O filme recusa tanto mostrar frontalmente a crueldade de Benjamin que, ao fim, sua morte diante de Lena parece quase querer criar pena para com o personagem. Igualmente, os conflitos entre as mulheres negras, até então escravizadas, e as brancas, até então sinhás, também são iniciados e finalizados artificialmente, sem qualquer resultado dramático. Com isso, observa-se a completa ausência de mudança em quaisquer das personagens. Isso subitamente é “resolvido” na sequência final, em que magicamente todas tornam-se amigas esquecendo os conflitos historicamente brutais de classe e raça que, na prática, perpassariam qualquer interação entre estas mulheres (digo que “perpassariam” porque o roteiro não atinge profundidade o suficiente para trabalhar o que seriam de fato estes conflitos a partir de suas personagens). O que se alcança, com isto, é um encerramento digno do visto em Metrópolis (Fritz Lang, 1927), em que a conciliação máxima vence, celebrando a manutenção velada da opressão a partir de uma pseudo-união artificial. Se, por um lado, este encerramento encena acriticamente a ideia ultrapassada e problemática de democracia racial, de Gilberto Freyre, o filme trata ainda como se a união entre sinhás e escravizadas fosse alguma atitude “revolucionária”. Neste sentido, a obra rapidamente deixa de ser inofensiva para tornar-se potencialmente abjeta.
Cena final de Metrópolis (1927), de Fritz Lang, em que é celebrada a conciliação idealista entre a “cabeça” (simbolizando a burguesia exploradora) e as “mãos” (simbolizando a classe trabalhadora explorada).
É por esta atitude impensada perante uma premissa delicada, resultando em inconsequência diante do grande trauma histórico de nosso país (a escravidão), que intitulo este texto em rima com o de Jacques Rivette sobre o filme Kapò (Gillo Pontecorvo, 1960); Da abjeção. Quero encerrar, também, citando-o:
“Nos incomodam há alguns meses com os falsos problemas da forma e do conteúdo, do realismo e do feérico, do roteiro e da “mizancêne”, do ator livre ou dominado e outras pilhérias; digamos que todos os temas nascem livres e iguais em direito; o que conta, é o tom, ou a inclinação, ou a nuança, como se quiser chamar – ou seja, o ponto de vista de um homem, o autor, mal necessário, e a atitude que toma esse homem em relação àquilo que ele filma, e assim em relação ao mundo e a todas as coisas: o que pode se exprimir pela escolha das situações, a construção da intriga, os diálogos, o trabalho dos atores, ou a pura e simples técnica, ’mesmo indiferentemente’.
[...]
Fazer um filme é mostrar certas coisas, é ao mesmo tempo, e pela mesma operação, mostrá-las por um certo viés; esses dois atos são rigorosamente indissociáveis. Da mesma forma que não pode haver absoluto da mise-en-scène, pois não há mise-en-scène no absoluto, da mesma forma o cinema nunca será uma “linguagem”: as relações do signo ao significado não funcionam aqui, e só culminam em heresias (...) Toda aproximação do fato cinematográfico que pretende substituir a adição à síntese, a análise à unidade, nos remete logo a uma retórica de imagens que não tem mais a ver com o fato cinematográfico quanto o desenho industrial com o fato pictórico; por que essa retórica permanece tão cara àqueles que se intitulam eles mesmos “críticos de esquerda”?”
(Jacques Rivette para a Cahiers du Cinéma nº 120, 1961)