Nimuendajú (Tania Anaya, 2025)
O Branco de Mil Faces
Escrito por Letícia Negreiros
Revisado por Davi Pieri
O Branco de Mil Faces
Escrito por Letícia Negreiros
Revisado por Davi Pieri
19 de setembro de 2025
Em 1917, a Argentina apresenta ao mundo um dos primeiros - senão o primeiro - longa-metragem de animação da história: El apóstol (Quirino Cristiani). Em 1905, Curt Nimuendajú, nascido Curt Unckel, estabelece o primeiro contato com povos indígenas brasileiros. Em 2025, Tania Anaya une as duas linhas temporais em Nimuendajú.
A diretora nos transporta para os diários de campo de Curt. Etnógrafo alemão autodidata, foi fundamental para a preservação e reconstituição da história de diversos povos originários. Era solitário, trabalhava sozinho e, na época, foi marginalizado por conta de seus métodos de pesquisa. Vivia entre os indígenas, tendo sido batizado por eles. Dividia seu tempo entre seis meses na vida com sua esposa Lila em Belém e seis meses em suas viagens de campo.
As linhas da animação pelas quais entrevemos sua vida remetem a imagens de jornal recortadas, readaptadas como colagem para uma nova história. Elas, no entanto, foram de fato desenhadas e animadas com rotoscopia, em estilo que alude a Out of the Inkwell (Max Fleischer, 1918 a 1929), menos cartunesco. Para além das escolhas criativas e estéticas, o formato se mostrou um recurso interessante para mostrar a nudez cotidiana indígena sem ter como obstáculo a vulgaridade e o erotismo associados ao corpo nu. Os detalhes não são tão significativos a ponto de reconstituir o que eram os rostos daquelas pessoas, mas a técnica se torna também uma bela escolha para reconstruí-los sem associar suas imagens a atores de nosso tempo.
Out of the Inkwell (Max Fleischer, 1918 a 1929)
Curt era tido como um amigo da causa indígena entre os brancos e o filme o retrata assim. “Um alemão querendo roubar o Brasil dos brasileiros”, acusam-no em dado momento. Para ele, os verdadeiros brasileiros eram os indígenas. Quem veio depois, após a colonização europeia e toda a miscigenação trazida, era um tipo de neo-brasileiro, como o próprio Curt. É um homem de dois lugares, que continuamente se fragmenta conforme explora o país.
Nas aldeias que visita, deixa sua marca. Apegando-se ao ideal do trabalho do etnólogo, o longa se deixa levar. Não que o retrate como um “salvador branco” ou algo do gênero. No entanto, parece diminuir seus erros em prol de sua pesquisa. Também não os ignora, mas a pincelada por cima de seus lapsos é, no mínimo, intrigante. O filme os admite - como levar às tribos doenças para as quais os indígenas não possuíam anticorpos -, mas a responsabilidade de Curt parece ser relevada.
As perguntas deixadas acerca do pesquisador são muitas. O que mais pode ter causado às tribos indígenas? Terá levado mais algum mal? Quantas mais pesquisou? Só teve, de fato, duas esposas? Afinal, além de Lila, também desposou uma indígena das tribos em que morou. Nimuendajú, porém, não se preocupa em responder a essas questões e nem tem o desejo de fazê-lo. A preocupação central é para com a história da pesquisa de Curt e seu impacto no registro dos povos originários, na construção de políticas indígenas. Mas, nesse processo, a complexidade do personagem - enquanto sujeito histórico e em sua versão nessa narrativa - se planifica e o filme perde parte do impacto. Uma parcela relevante de seu trabalho se macula pela preocupação gerada por essas dúvidas, e o questionamento acerca de suas intenções prejudica a atenção dada a sua pesquisa.