A falecida (Leon Hirszman, 1965)
A angústia de viver e o conforto de morrer
Escrito por Fillipe Medeiros
Revisado por Giovanna Celestino
A angústia de viver e o conforto de morrer
Escrito por Fillipe Medeiros
Revisado por Giovanna Celestino
17 de setembro de 2025
As histórias de Nelson Rodrigues sempre trazem à tona as complexidades da moral brasileira e levantam os tapetes de onde se escondem os segredos que sustentam as hipocrisias. Os tabus são constantemente confrontados, e, em uma guinada narrativa, testemunhamos o choque da realidade. Em A Falecida (Nelson Rodrigues, 1953), peça teatral que narra uma “tragédia carioca em três atos”, como diz o subtítulo, acompanhamos a angustiada Zulmira (interpretada pela magnífica Fernanda Montenegro). Obcecada com a morte, ela se vê esmagada pelo peso da existência e procura ter o “enterro mais bonito do Brasil”.
A obra foi adaptada para o cinema em 1965 por Leon Hirszman, nesse que é considerado um clássico do cinema brasileiro. Hirszman escreveu o roteiro junto ao saudoso Eduardo Coutinho, mantendo o espírito irônico da peça e inserindo um tom mais sombrio que encaixa bem no filme. Somos apresentados a Zulmira em uma chuva que encharca as ruas cariocas — chuva esta que mais tarde descobrimos possuir forte carga simbólica na narrativa. Ela vai até uma cartomante em busca de respostas para suas aflições e recebe um aviso que a deixa atordoada.
A direção sóbria de Hirszman concede ao filme um realismo social, conversando com os temas que atravessam aqueles subúrbios cariocas — da crise moral coletiva à desilusão alimentada pela desigualdade (de gênero, econômica etc). A crença mística de Zulmira, que logo se transforma em uma obsessão com a morte, é um artifício que revela as angústias de uma mulher exaurida pelo seu relacionamento frustrante e sua posição impotente frente às imposições que a vida lhe oferece.
Zulmira se vê presa aos labirintos que a oprimem, convencida de que apenas na morte se realizará como sujeito digno. Para ela, um enterro suntuoso representaria uma justiça póstuma pelo que não pôde alcançar em vida. Essa distorção de valores nasce de uma perspectiva que humaniza apenas o indivíduo detentor de bens. Em A Falecida, a morte é ressignificada como redentora, mais especificamente o ritual do enterro — esse, por sua vez, uma representação da vida idealizada.
Toninho (Ivân Candido), seu marido enfadonho e doente por futebol, faz pouco caso de seus desabafos e personifica o desinteresse que corrói o casamento deles. Desempregado e sem rumo, ele se torna a materialização do torpor que impede Zulmira de viver segundo seus desejos, pelo menos em público. Vemos ela condenar outros personagens com discursos moralistas, enquanto trai o marido em segredo. Faz isso amparada na religião e nos chamados bons costumes, princípios moldados em um Brasil conservador e profundamente hipócrita.
Ao filmar o Rio sessentista, em colaboração com o diretor de fotografia José Medeiros, Hirszman insere na estética do filme tons documentais, como um observador do cotidiano urbano. As vivências entrelaçadas produzem a sensação de sufocamento, onde personagens atormentados recorrem à alienação como forma de mitigar o peso da insatisfação e culpa. São figuras que giram em torno de um tipo de conformismo consciente, ou até mesmo de ilusões reconfortantes que tornam a vida mais palatável. O caráter realista como o Rio de Janeiro é retratado aqui, fugindo de artificialidades e floreios, revela a crise moral da sociedade carioca da época de forma honesta e reforça as contradições desencadeadas pela desigualdade econômica, evidenciando-as na atuação como agentes de opressão sobre o povo. Comum aos filmes do Cinema Novo, A falecida compartilha da pulsão crítica desse movimento, mas que aqui volta-se para um drama mais íntimo e específico: parte do micro para comentar as mazelas do macro.
A maior força da obra está em Fernanda Montenegro. Seus olhares penetrantes, que Hirszman faz questão de explorar em closes profundos, revelam sentimentos latentes de frustração com a vida. Montenegro concede a Zulmira uma complexidade atordoante, equilibrando-se entre a fragilidade e a determinação. Em uma das cenas mais belas já produzidas no cinema brasileiro, ela se banha na chuva, como se aquelas frágeis gotículas fossem a libertação total das privações que a sufocavam. Por um momento fugaz, Zulmira se vê livre.
O choque de realidade ao final, o famoso “a vida como ela é”, mote que atravessa as obras de Nelson Rodrigues, traduz perfeitamente a imutabilidade perpetuada pelas dinâmicas econômicas que regem o país. Mostra também a liquidez das projeções que construímos nas relações com o outro.
No diálogo de Zulmira com o agente funerário ao telefone, a dualidade de sua persona aparece: “...estarei livre. Serei tua, de meu marido, de todo mundo…”. De uma mulher que foi forçada a reprimir-se, arde o desejo por uma outra vida. Uma vida em que ela é adorada por todos, em que é vista como alguém.
A Falecida encerra em uma nota amarga, mas condizente com o todo da história. Em suma, a mesma sociedade que impõe regras morais, as rasga no oculto, punindo rapidamente aqueles que as burlam à luz do dia.